Arraso de Morrer por Mais
(António Lobo Antunes)
Para Luís
Costa
O lugar
onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do
Hospital de Santa Maria, onde a elegância dos doentes os transforma em reis.
Numa das últimas vezes que lá fui encontrei um homem que conheço há muitos
anos. Estava tão magro que demorei a perceber quem era. Disse-me
- Abrace-me
porque é o último abraço que me dá
durante o
abraço
- Tenho
muita pena de não acabar a tese de doutoramento
e, ao
afastarmo-nos, sorriu. Nunca vi um sorriso com tanta dor entre parêntesis,
nunca imaginei que fosse tão bonito.
Com o meu
corpo contra o dele veio-me à cabeça, instantâneo, o fragmento de um poema do
meu amigo Alexandre O'Neill, que diz que apenas entre os homens, e por eles,
vale a pena viver. E descobri-me cheio de respeito e amor. Um rapaz, de cerca
de vinte anos, que fazia quimioterapia ao pé de mim, numa determinação
tranquila:
- Estou aqui
para lutar
e, por
estranho que pareça, havia alegria em cada gesto seu. Achei nele o medo também,
mais do que o medo, o terror e, ao mesmo tempo que o terror, a coragem e a
esperança.
A
extraordinária delicadeza e atenção dos médicos, dos enfermeiros, comoveu-me.
Tropecei no desespero, no malestar físico, na presença da morte, na surpresa da
dor, na horrível solidão da proximidade do fim, que se me afigura de uma
injustiça intolerável. Não fomos feitos para isto, fomos feitos para a vida. O
cabelo cresce-me de novo, acho-me, fisicamente, como antes, estou a acabar o
livro e o meu pensamento desvia-se constantemente para a voz de um homem no meu
ouvido
- Acabar a
tese de doutoramento, acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de
doutoramento
porque não
aceito a aceitação, porque não aceito a crueldade, porque não aceito que
destruam companheiros. A rapariga com a peruca no braço da cadeira. O senhor
que não olhava para ninguém, olhava para o vazio. Ali, na sala de
quimioterapia, jamais escutei um gemido, jamais vi uma lágrima. Somente feições
sérias, de uma seriedade que não topei em mais parte alguma, rostos com o mundo
inteiro em cada prega, traços esculpidos a fogo na pele. Vi morrer gente quando
era médico, vi morrer gente na guerra, e continuo sem compreender. Isso eu sei
que não compreenderei. Que me espanta. Que me faz zangar. Abrace-me porque é o
último abraço que me dá: é uma frase que se entenda, esta? Morreu há muito
pouco tempo. Foda-se. Perdoem esta palavra mas é a única que me sai. Foda-se.
Quando eu era pequeno ninguém morria. Porque carga de água se morre agora, pelo
simples facto de eu ter crescido? Morra um homem fique fama, declaravam os
contrabandistas da raia. Se tivermos sorte alguém se lembrará de nós com
saudade. De mim ficarão os livros. E depois? Tolstoi, no seu diário: sou o
melhor; e depois? E depois nada porque a fama é nada.
O que é
muito mais do que nada são estas criaturas feridas, a recordação profundamente
lancinante de uma peruca de mulher num braço de cadeira. Se eu estivesse ali
sozinho, sem ninguém a ver-me, acariciava uma daquelas madeixas horas sem fim.
No termo das sessões de quimioterapia as pessoas vão-se embora. Ao
desaparecerem na porta penso: o que farão agora? E apetece-me ir com eles,
impedir que lhes façam mal:
- Abrace-me
porque talvez não seja o último abraço que me dá.
Ao M. foi. E
pode afigurar-se estranho mas ainda o trago na pele. Durante quanto tempo vou
ficar com ele tatuado? O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa
foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria onde a dignidade dos
escravos da doença os transforma em gigantes, onde só existem, nas palavras do
Luís, Heróis.
Onde só
existem Heróis. Não estou doente agora. Não sei se voltarei a estar. Se voltar
a estar, embora não chegue aos calcanhares de herói algum, espero comportar-me
como um homem. Oxalá o consiga. Como escreveu Torga o destino destina mas o
resto é comigo. E é. Muito boa tarde a todos e as melhoras: é assim que se
despedem no Serviço de Oncologia. Muito boa tarde a todos e até já, mesmo que
seja o último abraço que damos.
Fonte: http://expresso.sapo.pt/lobo-antunes-arraso-de-morrer-por-mais=f846256
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